Teste coronavírus e a capacidade tecnológica nacional em saúde
Maurício Zuma e Pedro R. Barbosa
A Fiocruz, por meio de Bio-Manguinhos (1) e do IBMP (2), acaba de entregar ao governo um kit de diagnóstico desenvolvido no país para detecção do novo coronavírus (Covid-19). O primeiro lote já está disponível nos laboratórios designados pelo Ministério da Saúde. O seu uso, em termos dos requisitos regulatórios, é destinado inicialmente para pesquisa, enquanto o seu registro sanitário não for concedido pela Anvisa. O kit diagnóstico segue padrões internacionalmente aceitos e, apesar de sua designação “para uso exclusivo em pesquisa (Research Use Only – RUO)”, possui os requisitos de sensibilidade, reprodutibilidade e especificidade necessários ao diagnóstico preciso do Covid-19, nos mesmos padrões de outros testes na mesma plataforma já disponibilizados ao Ministério da Saúde.
A colaboração entre estes dois institutos representa capacidade tecnológica interna ao país, com resposta rápida diante de condição de grave risco sanitário. O kit nacional reforça e qualifica ainda mais a capacidade já demonstrada pelo MS e pelo SUS na proteção da população. São ações estratégicas de Estado. De imediato, são mil testes disponíveis e mais 15 mil em poucos dias, além de outras 10 mil reações para detecção de Influenza A e B.
Há competência instalada no país, sendo Bio-Manguinhos e o IBMP exemplos diferenciados no cenário nacional e internacional. No entanto, ainda há um caminho para o país estabelecer-se como centro de inovação no campo da biotecnologia em saúde. O Brasil, com o maior sistema público de saúde do mundo, o SUS, apresenta-se com grande dependência de produtos importados, vitais para o maior impacto na prevenção (vacinas), fins terapêuticos e diagnóstico em importantes doenças como o câncer e as demais de caráter crônico-degenerativas, mas igualmente para doenças infecciosas como a gripe (caso atual da H1N1, Covid-19 e demais), gastro-intestinais, e arboviroses como dengue, zika, chikungunya e febre amarela.
O IBMP se fortaleceu tecnologicamente no final da década passada com a nacionalização por meio de Bio-Manguinhos do teste molecular (NAT) para detecção de HIV e HCV (hoje já incorporado o HBV e em breve cobrindo igualmente malária) e sua introdução na rotina de triagem sorológica na hemorrede brasileira. Este movimento foi possível graças ao empreendedorismo institucional da Fiocruz e ao apoio e recursos recebidos do Ministério da Saúde. Além de produzir notáveis efeitos sanitários ao elevar os níveis de segurança transfusional no país (mais de 35 milhões de bolsas testadas), este projeto foi ponto de partida para a capacitação tecnológica e industrial, base atual para projetos de desenvolvimento e produção de testes diagnósticos, ambiente pró–inovação orientado pelas necessidades do SUS. São dezenas de projetos em andamento, com novos produtos entregues à sociedade.
Incentivos e novos modelos de financiamento da pesquisa tecnológica são ainda bastante necessários. Estruturas laboratoriais e produtivas na ponta da inovação não são baratas. Técnicos e pesquisadores preparados para a inovação nesse setor precisam ser formados. No entanto, os resultados apresentados por estes dois institutos, tanto sanitários quanto econômicos e mesmo estratégicos para o país são notórios. Exemplo recente demonstrado por Bio-Manguinhos, com o rápido escalonamento da capacidade de produção das vacinas de febre amarela e sarampo, escassas no mundo! Mas também com suas PDPs (3), que incorporam novos biofármacos e vacinas, aumentando o acesso à população a preços mais justos.
Resta ampliar e acelerar a capacidade de desenvolvimento autóctone, de modo competitivo, gerando mais acesso e maior dinâmica econômica e produtiva nacional. Esse círculo é virtuoso, articulando desenvolvimento tecnológico, mais saúde e mais dinamismo na economia.
Bio-Manguinhos e o IBMP possuem dezenas de projetos em curso para novos kits, biofármacos e vacinas. O kit Covid-19 é apenas um dentre vários casos de sucesso. Mais recursos públicos são necessários, aportes privados igualmente. Sobre isso, projeto recém aprovado no Senado estimula doações para ciência e tecnologia com isenção no Imposto de Renda (PL 776/2019).
O IBMP recém criou um Fundo Patrimonial – Endowment para doações, prática comum em grandes universidades no mundo. No Brasil, essa cultura é limitada, não incentivada legalmente. A sociedade e, em especial os mais afortunados, precisam ser sensibilizados a doar, certos da capacidade profissional e transparência no uso dos recursos e na segurança da devolução à sociedade de produtos inovadores para mais acesso e qualidade em saúde.
Em 2020 a Fiocruz completa 120 anos. A entrega do teste Covid-19 em tempo recorde é fruto de competências instaladas e compromisso institucional com a saúde e a inovação. Mais inovações são possíveis, e não são poucas as necessidades de saúde aguardando por novos produtos nacionais.
Maurício Zuma é diretor de BioManguinhos/Fiocruz; Pedro R. Barbosa é Diretor-Presidente do IBMP
(1) Bio-Manguinhos é o Instituto de Tecnologias em Imunobiológicos, unidade técnico-científica da Fiocruz.
(2) IBMP é o Instituto de Biologia Molecular do Paraná, vinculado à Fiocruz e ao Tecpar.
(3) Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo: programa do Ministério da Saúde que incentiva parcerias tecnológicas e industriais para capacitação da indústria nacional, pública e privada.