A lição do Ceará para os gestores da saúde
Arthur Aguillar
Se você é um gestor da saúde em qualquer nível de governo, é muito provável que você tenha um problema complexo nas mãos. Talvez algum especialista, após uma rigorosa avaliação, já tenha apresentado uma possível solução para o seu problema, o que pode inspirar o início de uma intervenção efetiva. Na prática, no entanto, a teoria é outra. Repleta de desafios políticos e administrativos, a implementação de qualquer política pública envolve, parafraseando o economista Albert Hirschman, uma grande viagem de descoberta, caracterizada pela nossa incerteza e ignorância sobre o trajeto e seus resultados. Como proceder?
O Programa de Agentes da Saúde (PAS) implementado no Ceará nos anos 80 e 90, e analisado pela cientista política Judith Tendler em seu livro Bom Governo nos Trópicos, pode fornecer lições valiosas para aqueles que se veem diante de um problema complexo de saúde pública. Criado em 1987 como parte de um programa de proteção social que buscava mitigar os efeitos de uma das grandes secas que frequentemente assolam o nordeste brasileiro, o PAS caracterizou-se pela contratação de um contingente imenso de agentes de saúde com baixa escolaridade e sem nenhum tipo de estabilidade empregatícia. Esses agentes acompanhavam a saúde das famílias nos municípios, implementando práticas de saúde preventiva. O programa foi responsável por uma mudança decisiva na cobertura e nos resultados de saúde do estado.
Entre 1987 e 1992, anos da implementação do programa, a mortalidade infantil baixou de 102 para 65 por mil nascidos. A cobertura de vacinação de pólio saltou de 25% para 90%. O percentual de municípios que possuíam uma enfermeira subiu de 25% para aproximadamente 100%. A astúcia da política começava já no processo de contratação dos agentes, realizado diretamente pelo governo do estado de modo transparente e meritocrático. Em um cenário de seca e baixo emprego, a chegada dos contratantes nos municípios era um evento que causava grande excitação. O processo envolvia provas e entrevistas e tinha uma estratégia de persuasão baseada no impacto que o programa teria no município: aqueles que fossem contratados teriam a honra de servir a comunidade. Ser contratado era como ganhar um grande prêmio público. Aqueles que não fossem selecionados teriam o papel de monitorar a conduta dos novos agentes de saúde, garantindo que a política não fosse capturada pela dinâmica política local.
Essa “honra de servir a comunidade” foi construída através de uma política de comunicação perspicaz, que buscou fortalecer a imagem dos agentes da saúde frente ao resto da sociedade, por meio de campanhas de rádio e televisão. Essa estratégia, voltada para a motivação intrínseca e o reconhecimento social, teve grande efeito sobre a motivação dos agentes.
Para além da estratégia de comunicação, duas outras características tornavam a carreira extremamente atrativa. Primeiro, o treinamento de 3 meses realizado para o programa poderia ser aproveitado em outras posições, tanto no setor público quanto no privado. Segundo, os agentes de saúde eram dotados de um alto nível de autonomia e discricionariedade em seu trabalho. O mantra organizacional da autonomia e colaboração, das empresas que atuam na fronteira da economia do conhecimento, já estava presente 25 anos atrás nos municípios do sertão nordestino, frequentemente caracterizados como clientelistas e de baixa capacidade burocrática.
A discricionariedade foi também determinante na aceitação da política por parte das comunidades locais. Muito da saúde preventiva está no escopo dos comportamentos humanos, em geral pouco maleáveis. É preciso que as pessoas mudem sua forma de fazer as coisas para colher benefícios que são enormes, embora difusos no tempo e pouco salientes. Essa mudança pressupõe, portanto, um forte laço de confiança entre família e profissional de saúde. Se a figura do médico traz implicitamente uma dinâmica de poder assimétrica, o que reforça a reatividade aos conselhos, os agentes de saúde usaram da criatividade, do cuidado e frequentemente de uma desobediência deliberada de regras profissionais para ganhar a população. Nos municípios onde a política foi mais bem-sucedida, os agentes passaram a fazer pequenos procedimentos curativos, a ajudar mães em tarefas domésticas e a conduzir campanhas de saúde coletiva em suas comunidades. Por meio desses procedimentos que iam além de suas responsabilidades formais – e, muitas vezes, frontalmente contra as regras – os agentes da saúde ganhavam a confiança da população, logrando induzir as mudanças comportamentais tão importantes para a saúde preventiva.
O que a experiência do Ceará pode ensinar ao gestor de políticas de saúde? A primeira lição está no uso de incentivos não monetários como principal engrenagem motivacional da força de trabalho. Mesmo na típica secretaria municipal de saúde em que os recursos para bônus e outros incentivos são escassos, existe um grande espaço para a adoção de outras estratégias de motivação dos profissionais de saúde. A segunda lição está na autonomia e na discricionariedade. Esses desvios positivos, frequentemente contrários aos procedimentos formais, estavam por trás do sucesso da política onde ela deu mais certo.
Nesse sentido, um bom primeiro passo para a longa viagem de descoberta da implementação pode ser olhar para nosso próprio quintal. Ou para a casa do vizinho. O que é feito na unidade básica de saúde que possui um desempenho melhor que o resto do município? O que é feito nos outros municípios que possuem um desempenho melhor? Como autorizar e monitorar testes e intervenções que vão contra as normas? E, uma vez identificadas, como normatizar e codificar essas práticas?
A terceira e última lição está na intrincada rede tecida entre estado e município, combinando as vantagens comparativas de cada entidade na implementação de uma política efetiva. A centralização dos processos de entrada no programa, contratação de agentes de saúde e comunicação no governo estadual protegeu a política de interesses clientelistas. Por sua vez, a centralização da gestão do programa em enfermeiras contratadas pelo município criou uma política dotada de capilaridade e capaz de escutar e adaptar-se a diferentes realidades. Nessa articulação, cada entidade foi capaz de aproveitar suas competências, criando um arranjo de política robusto, maior que a soma das partes.
Para além de um programa genial, o PAS inspirou o desenho de nossa política nacional de saúde da família, muito baseada no uso de agentes da saúde. Vemos aí um belo exemplo de uma visão, um tanto otimista, do melhor do nosso pacto federativo. Um Brasil onde a criatividade e a fecundidade de nossos estados e municípios servem como uma fábrica de ideias, e nosso arranjo institucional, como um laboratório vivo de políticas, onde as melhores intervenções se difundem pelo resto do país. O genoma das políticas públicas efetivas do amanhã reside no que cidades e estados estão fazendo hoje para responder aos seus maiores desafios.
Arthur Aguillar é economista, mestre em desenvolvimento pela Harvard University e pesquisador do Instituto de Pesquisas para Políticas de Saúde (IEPS)