Judicialização da saúde, solução ou problema?

Ricardo de Oliveira

O enorme crescimento da judicialização da saúde é um fenômeno recente e tem sérias consequências na execução da política pública de saúde. Por exemplo, no período de 2011 a 2016 no Espírito Santo houve um crescimento de 347% no quantitativo de ações judiciais, contra um crescimento populacional de cerca de 12%. Esse padrão de crescimento se repete em todo o país.

Isso ocorre porque o cidadão busca a justiça para garantir seu direito à saúde por não estar satisfeito com o tempo de espera para acesso aos serviços, ou ainda por ter recebido uma orientação médica para realizar um tratamento em que o medicamento não é fornecido pelo SUS, dentre outras demandas.

De fato, a Constituição Federal estabelece que saúde é direito de todos e dever do Estado, e que esse direito deve ser assegurado por um sistema público, universal, com integralidade no atendimento e garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.

Além disso, o entendimento majoritário, no judiciário, é que o conceito de “integralidade” significa que o Estado deve atender a todas as demandas de saúde dos cidadãos. Apenas recentemente o Supremo Tribunal Federal introduziu alguns critérios para fornecimento de medicamentos de alto custo.

É fato que a compreensão desse conceito provoca muitos debates nos países que dispõem de sistema público universal e tem levado à necessidade de tornar clara a aplicação desse conceito por meio de ato legal. Contudo, no Brasil, o governo federal e o Congresso Nacional relutam em enfrentar esse debate, provocando um enorme desgaste da política pública de saúde junto ao cidadão.

Temos, portanto, de um lado, uma demanda judicial crescente dos cidadãos por acesso aos serviços de saúde e, por outro, uma aceitação dessa demanda por parte do judiciário como sendo legítima do ponto de vista da legislação.

A demanda da população vai desde serviços já previstos na política de saúde, os quais não deveriam faltar, até serviços ainda não oferecidos pelo SUS.

A judicialização de serviços, já previstos na política pública de saúde, pode indicar falhas na provisão de serviços e a atuação do judiciário tende a corrigir essas falhas. No entanto, faz-se necessário verificar se houve mesmo falha no atendimento ou estamos diante de um entendimento individual sobre como o serviço demandado deveria ser prestado. Além disso, deve-se ter o cuidado de não incentivar a população a demandar primeiro ao judiciário antes de procurar os serviços públicos de saúde, prática inaceitável do ponto de vista de uma política pública de saúde.

Também é preciso muita cautela no debate em relação à judicialização de serviços ainda não ofertados pelo SUS. A decisão sobre a incorporação de novas tecnologias no SUS depende de um estudo sobre custo/efetividade dessas tecnologias realizado pelo Ministério da Saúde com suporte de especialistas e debate público. Sendo assim, é bastante improvável que uma decisão judicial, a partir do parecer de apenas um médico, possa atender ao interesse da política pública de saúde.

Dessa maneira, avançar na ampliação do acesso aos serviços de saúde pela população pressupõe, necessariamente, enfrentar o tema do enorme crescimento da judicialização da saúde em função das suas consequências na prestação de serviços. Relaciono a seguir alguns temas desse debate:

1) O volume de recursos financeiros envolvido na judicialização é muito grande; somente o Ministério da Saúde gastou R$ 1,3 bilhões, em 2018, apenas para medicamentos e insumos raros, conforme seu relatório de gestão. Esse recurso foi aplicado para atender às demandas individuais e não para execução de ações previstas no planejamento do SUS com vistas a demandas coletivas.

2) A decisão judicial pode priorizar o atendimento de quem tem menos necessidade, do ponto de vista médico, em relação ao conjunto de usuários que aguardam na fila para serem atendidos. A prioridade de atendimento no SUS é definida pela ordem de chegada e pela urgência do caso, sendo assim, apenas os médicos reguladores do SUS têm a visão do conjunto de demandas e, portanto, condições técnicas para definir prioridades no atendimento. A decisão judicial tende a quebrar o princípio da equidade no atendimento aos usuários do SUS.

3) Por conta do crescente aumento da judicialização, as secretarias estaduais e municipais de saúde estão sendo pressionadas a criar grandes estruturas de modo a atender às demandas judiciais no prazo requerido. A secretaria estadual de saúde do Espírito Santo, por exemplo, teve que passar de 19 servidores, em 2015, para 59, dedicados exclusivamente a atender essas demandas que alcançaram, ao final de 2018, em média, 49 mandados judiciais por dia.

 

4) Os juízes estão penalizando, pessoalmente, as autoridades e técnicos do SUS pelas deficiências de atendimento na prestação de serviços de saúde por meio de mandados de prisão, condução coercitiva, bloqueios de contas pessoais, multas, além de outras penalidades impostas. Esse tipo de decisão provoca insegurança jurídica e cria enormes dificuldades para o gestor, tanto do ponto de vista pessoal, na organização da sua defesa, como na formação das equipes das secretarias de saúde, com forte impacto no desempenho gerencial. Cada dia torna-se mais difícil selecionar profissionais na área de saúde que queiram assumir cargos de chefia, uma vez que o risco de ser penalizado pessoalmente está crescendo com o aumento da judicialização. Precisamos estabelecer, com urgência, um ambiente de segurança jurídica que permita aos gestores e técnicos das secretarias de saúde se dedicarem à superação dos desafios de ampliar o acesso da população aos serviços de saúde, sem o constante medo de serem responsabilizados por obrigações do Estado.

Convém ressaltar que o acesso à justiça faz parte do Estado democrático de direito, porém, precisamos debater com urgência as razões do seu crescimento excessivo e como isso impacta na execução da política pública de saúde.

Estamos diante de um problema que exige uma ação coletiva, o que evidencia a necessidade de aprofundar o diálogo entre o Executivo, o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Legislativo, com objetivo de coordenar a atuação do Estado no sentido de buscar melhorar a prestação de serviços de saúde à população.

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi secretário estadual de gestão e recursos humanos do ES no período de 2005/2010 e secretário estadual de saúde do ES entre 2015/2018. Autor do livro “Gestão Pública: Democracia e Eficiência” (2012).