A intersecção público-privada na utilização de serviços de saúde no Brasil
Maíra Coube
Considerando a extensão da cobertura de planos de saúde privado no Brasil em conjunto com a existência de um sistema de saúde universal, espera-se que haja alguma intersecção de serviços e utilização público-privada na saúde. De um lado, estima-se que há uso de recursos complexos e caros na saúde pública por quem tem plano de saúde. Da mesma forma, é crescente a compra de serviços de saúde privados por quem não tem plano de saúde, não apenas de medicamentos, mas também de exames de diagnósticos, consultas médicas e outros tratamentos, possivelmente para mitigar a lista de espera do setor público. Mas o que os dados nos dizem?
A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) realizada em 2013 contém uma grande quantidade de dados sobre a utilização de serviços de saúde nos últimos 12 meses. Ademais, os respondentes indicam se possuem planos de saúde ou não. Dessa forma, podemos extrair informações interessantes sobre o perfil e tipo de uso de diferentes grupos de usuários de saúde para investigar como se dá a intersecção público-privada de utilização de serviços de saúde. Particularmente de interesse, quem tem plano de saúde e utilizou o SUS ou quem não tem plano de saúde, mas utilizou serviços privados pagando-os diretamente, aqui nomeados como grupos de intersecção público-privado.
Os dados mostram uma distinção clara entre os grupos de usuários quanto à renda. A Figura 1 apresenta o perfil dos grupos de usuários de serviços de saúde por décimo de renda média domiciliar per capita entre aqueles que realizaram algum atendimento de saúde nos últimos 12 meses. Observamos que os usuários que não tem plano de saúde e utilizaram o SUS (Grupo I) apresentam renda mais baixa. No outro extremo, aqueles com plano de saúde e que utilizaram apenas o setor privado (Grupo II), apresentam renda média elevada. Já os grupos de usuários que navegam entre os sistemas público-privado (Grupos III e IV), seja utilizando os serviços do SUS mesmo tendo planos de saúde, ou utilizando o setor privado sem possuir planos de saúde, apresentam perfil de renda parecido.
Outro fato relevante é o volume de utilização pelos grupos de intersecção. O SUS destinou aproximadamente 10% dos atendimentos e internações para pessoas com planos de saúde, enquanto a busca pelo setor privado por aqueles sem plano representou aproximadamente 20% do volume de serviços privados. A Figura 2 mostra o volume total de utilização por esses dois grupos de usuários, Grupo III e IV. No caso do Grupo III, indivíduos que utilizaram o SUS mesmo possuindo planos de saúde realizaram 2,0 milhões de atendimentos de saúde no SUS, o que representou 10,9% dos atendimentos totais do SUS; e 940 mil internações hospitalares, ou 11,5% do total.
Já o grupo IV, usuários sem plano de saúde que utilizaram o setor privado realizaram 2,6 milhões de atendimentos, o que representou 22,9% do total de atendimentos privados; e 854 mil internações hospitalares ou 21,8% do total de internações no setor privado.
Figura 2. Volume total de atendimentos de saúde e internações por grupo de usuários. Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Elaboração própria da autora.
Por que quem possui planos de saúde utiliza os serviços do SUS? O que explica o Grupo III?
Os dados mostram que há uma intersecção considerável em termos de utilização de serviços entre os setores público e privado. Por um lado, pode refletir a extensão da cobertura dos planos de saúde, levando beneficiários a buscar o SUS em situações de não cobertura ou cobertura parcial do plano (ex. vacinação, consulta odontológica). Por outro lado, também pode significar uma percepção de melhor qualidade no setor público para determinados serviços. Vejamos o que os dados nos dizem.
O tipo de atendimento mais utilizado no SUS por beneficiários (Grupo III) foi de consulta médica (77% dos atendimentos). Já com relação às internações hospitalares, cirurgia e tratamento clínico foram os principais motivos para beneficiários internarem no SUS (29% e 42% das internações, respectivamente). Segundo dados de ressarcimento do SUS pela ANS de 2015, hormonioterapia e hemodiálise foram os atendimentos ambulatoriais mais frequentes identificados.
Por que quem não tem plano de saúde utiliza o setor privado? O que explica o Grupo IV?
Na situação em que o usuário não tem plano e utiliza o serviço privado, há uma preocupação sobre o impacto do nível de gastos com despesas catastróficas como proporção da renda familiar, que pode causar uma sobrecarga orçamentária, particularmente para famílias de baixa renda. Será que as filas de espera do setor público são muito elevadas para esses procedimentos e por serem de alta complexidade e urgentes, fazem com que o usuário procure o setor privado?
A busca pelo setor privado por quem não tem plano foi também principalmente para realizar consulta médica (59% dos atendimentos), seguido de consultas odontológicas (12%). Com relação às internações, cirurgias e tratamentos clínicos também foram os motivos mais utilizados (38% e 30% respectivamente), mas vale destacar a alta proporção de partos cesáreos procurados no setor privado por quem não tem plano de saúde.
O que os dados apresentados nos mostram? Primeiramente, que as interações e impactos da intersecção público-privada na saúde são complexos. Os usuários que acessam os dois sistemas de saúde, público e privado, nesta análise nomeados Grupos III e IV, possuem distribuição de renda parecida e parecem buscar serviços no setor público e privado por motivos similares (principalmente consultas médicas, cirurgias e tratamentos clínicos), com maior predominância da busca de partos cesáreos no setor privado por quem não tem plano de saúde. Os volumes de intersecção também são representativos, aproximadamente 10% do volume de atendimentos/internações SUS e 20% do volume do setor privado.
Certamente, há muitos outros aspectos a serem investigados sobre a intersecção público-privada na utilização de serviços de saúde. Nesse primeiro olhar sobre os dados, no entanto, já é possível observar características interessantes dessa intersecção. Futuras análises poderão investigar os determinantes desta intersecção, como por exemplo, relacionados à qualidade do SUS, disponibilidade de equipamentos, leitos, profissionais de saúde, entre outras. Além disso, a próxima PNS está em produção neste ano e mostrará como evoluíram essas interações.