Saúde e desenvolvimento econômico: ineficiências que precisam ser tratadas para o crescimento econômico no Brasil
Leandro Fonseca da Silva
Paul Krugman, laureado com o Nobel de economia, já disse, em uma tradução livre, que “produtividade não é tudo, mas no longo prazo é quase tudo”. De fato, a superação da baixa produtividade da economia brasileira é um dos principais desafios para a retomada do crescimento econômico e social do País de maneira sustentável. Embora o setor de saúde tenha ganhos menores de produtividade, este artigo pretende destacar sua contribuição para a economia como um todo. Ademais, sem a pretensão de esgotar o tema, o artigo também destaca três dos principais fatores de ineficiência setoriais e como eles poderiam ser tratados, promovendo o setor como um dos motores da retomada do desenvolvimento do País.
Na medida tradicional de produtividade do trabalho – produção per capita -, estudos apontam que o setor de saúde tem menor produtividade que os demais setores econômicos. Esse fenômeno seria explicado por uma teoria chamada “doença de custos de Baumol”, segundo a qual setores intensivos em mão-de-obra, cujo ganho de produtividade depende da maior experiência profissional dos trabalhadores, acabam tendo aumentos reais de salários, o que levaria a uma elevação dos custos em maior medida do que em outros setores e, portanto, a uma menor produtividade. Todavia, o que essa abordagem não consegue captar são os benefícios intrínsecos e mais gerais que o setor de saúde provê, na medida em que contribui sobremaneira para a produtividade dos demais setores econômicos, ao manter ativa e produtiva a força de trabalho.
Seja mostrando o crescimento do PIB em países de baixa renda por conta da redução da mortalidade, seja apurando-se o efeito no aumento do PIB por conta de 1 ano a mais de expectativa de vida populacional, diversos estudos têm apontado para o impacto transversal positivo dos gastos em saúde nos demais setores e no crescimento econômico. Ou seja, em um olhar mais macro, saúde está associada à riqueza e, portanto, países que conseguem manter ou melhorar a condição de saúde de sua população, desenvolvem seu capital humano e a produtividade de sua economia.
Sem a pretensão de ser exaustivo, existem três fatores que contribuem para uma dinâmica não-eficiente do setor de saúde no Brasil a serem abordados neste artigo. O primeiro fator é o baixo nível de financiamento público em saúde, associado à segmentação entre os setores público e privado. A Constituição Federal estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado, mas não proibiu a atuação de agentes privados no setor – ao contrário, garantiu, em seu art. 199, a liberdade de atuação na saúde à iniciativa privada. Formou-se então um sistema misto de saúde, no qual toda população tem direito a utilizar o sistema público de saúde e 24,2% da população também é coberta por planos de saúde privados. Há, ainda, a possibilidade de gastos “out-of-pocket”, nos quais os indivíduos contratam diretamente serviços de assistência à saúde às suas expensas. Em relação aos gastos, mais de 50% do total despendido no País com saúde é feito por entes privados, sendo que 52,8% dos gastos privados realizados por meio de operadoras de planos de saúde. Esse padrão é diferente dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, nos quais a despesa pública com saúde, em média, é de 73,4%. Assim, os resultados em saúde no Brasil tendem a ser largamente influenciados pelo setor privado de saúde, em especial pela saúde suplementar.
Importante lembrar aqui que financiamento é diferente de provisão. Mecanismos de mercado podem prover serviços de maneira mais eficiente e de melhor qualidade do que os prestados gratuita e diretamente pelo setor público. Todavia, o volume de gasto público em saúde no Brasil (em torno de 4% do PIB) é muito baixo em comparação a outros países, o que leva a dificuldades estruturantes na provisão adequada dos serviços de assistência à saúde, seja diretamente, seja por meio de contratação de prestadores privados. Por outras palavras, a remuneração dos serviços prestados no âmbito do Sistema Único de Saúde (em equipamentos públicos ou privados) não se mostra suficiente, gerando oferta sub-ótima e filas, especialmente na atenção secundária e terciária. Nesse cenário, o espaço é ocupado pelo setor privado de saúde, tanto no financiamento (essencialmente, por meio dos planos de saúde) quanto na provisão dos serviços, porém de forma descoordenada. Importante notar que a coexistência dos setores público e privado se dá de forma segmentada, ou seja, sem integração. Por exemplo, se um paciente realizar consultas ou exames no setor privado, não conseguirá acessar a atenção secundária ou terciária do SUS sem passar novamente pela atenção primária, desta vez no setor público.
Quando analisados os resultados em saúde, constata-se a baixa performance do atual sistema segmentado. Estudo do Banco Mundial (2017), baseado em análise envoltória de dados (DEA, na sigla em inglês) orientada a produtos e insumos, na qual se utilizou quatro indicadores (anos de vida padronizados por idade e ajustados por incapacidade, probabilidade de morte entre 30 e 70 anos de idade por doenças cardiovasculares, câncer, diabete ou problemas respiratórios crônicos, porcentagem de gastos de recursos próprios sobre as despesas totais com saúde como um indicador de proteção financeira e um indicador de equidade na saúde) constatou que o Brasil, com o mesmo volume de recursos, deveria ser capaz de melhorar em nove pontos percentuais seus resultados em saúde.
O segundo fator de ineficiência do setor de saúde no Brasil é a prevalência de um modelo assistencial fragmentado, no qual uma condição clínica é tratada por meio de diferentes episódios de cuidado, muitas vezes, por diferentes prestadores, de forma não-coordenada. Embora o setor público tenha buscado organizar a “porta de entrada” no sistema por meio da atenção primária, especialmente através da Estratégia de Saúde da Família, a realidade dos hospitais públicos e das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) demonstra que essa organização pretendida não foi alcançada. Já no setor privado, os beneficiários de planos de saúde possuem maior facilidade de acesso à rede e aos especialistas, o que se reflete em pacientes “perdidos na rede”, buscando por conta própria o diagnóstico e o tratamento adequado para seus problemas de saúde. Ademais, a já tratada segmentação entre os setores público e privado torna a trajetória do paciente entre os dois setores redundante, com repetições de consultas e exames.
No setor privado, a forma de remuneração prevalente dos prestadores de serviços de assistência à saúde (o pagamento por procedimento) reforça a fragmentação do cuidado, haja vista que cada um recebe pelo procedimento que executou dentro do que deveria ser uma linha de cuidado, não havendo vinculação com o desfecho clínico. Ademais, a fragmentação do cuidado não se relaciona apenas à redução da capacidade resolutiva, mas também à alienação dos profissionais de saúde em relação ao seu trabalho e aos resultados. Segundo MALTA et al. (2004) “na medida em que cada especialista se encarrega de uma parte da intervenção, em tese, ninguém pode ser responsabilizado pelo resultado do tratamento como um todo”. E, se ninguém pode ser responsabilizado, não é possível relacionar a remuneração aos resultados em saúde.
Para lidar com a fragmentação dos serviços, os sistemas de saúde nos demais países têm buscado rever a estrutura de incentivos em prol da centralidade no paciente. Para tanto, algumas das principais iniciativas visam identificar os resultados em saúde que importam aos pacientes. No caso da OCDE, por exemplo, o seu Comitê de Saúde vem patrocinando a iniciativa PaRIS (Patient-Reported Indicator Surveys) que, em linhas gerais, consiste em pesquisas para construção de indicadores de saúde relatados pelos pacientes. A iniciativa visa tornar os sistemas de saúde mais centrados nas pessoas, por meio da coleta sistemática de dados acerca do que mais importa aos pacientes em função das suas condições clínicas e dos tratamentos possíveis. As medidas tradicionais de resultado em saúde em termos de sobrevivência ou mortalidade permanecerão úteis, obviamente, mas como elas não capturam outros impactos igualmente importantes para as pessoas, é preciso que os sistemas de saúde reorganizem a oferta de serviços para atenderem a essas expectativas. Pessoas diagnosticadas com câncer, por exemplo, valorizam muito a sobrevivência, todavia, o sucesso terapêutico enseja outros aspectos como controle de dor e náusea, qualidade do sono, imagem do corpo, função sexual, autonomia para realizar atividades cotidianas e tempo ausente do trabalho ou de casa. Todos esses fatores contribuem para a qualidade de vida do paciente e são também valorizados por sua família e amigos. Daí a importância de se medir resultados em saúde relatados pelos pacientes para a promoção de sistemas de saúde centrados nas pessoas.
Essa iniciativa é reflexo de movimento cada vez mais consistente no setor de saúde: a busca por um sistema que entregue resultados em saúde que realmente importam a um custo suportável. Por outras palavras, é a busca pelo aumento da produtividade do setor de saúde. Interessante notar aqui a importância das empresas contratantes de planos ou seguros privados de assistência à saúde para seus funcionários. Sendo elas a principal fonte pagadora dos planos de saúde (2/3 dos beneficiários são ligados a planos coletivos.
Embora estejam associados a um benefício coletivo, programas de promoção à saúde e prevenção de doenças não são típicos no setor privado. De fato, como há uma rotatividade elevada dos contratos coletivos empresariais (cerca de 25% ao ano, segundo dados da ANS), muitas operadoras de planos de saúde não investem nessas ações. Todavia, um colaborador que hoje está na empresa A, amanhã poderá estar na empresa B. Portanto, quanto mais as empresas contratantes passarem a demandar não apenas a cobertura assistencial em caso de doença, mas também ações em prol da manutenção da saúde, melhor a perspectiva de uma mudança no modelo assistencial vigente e maior o benefício coletivo para a sociedade.
Ao contrário do Japão, no Brasil, a atuação das empresas contratantes de planos de saúde é incipiente na conformação dos serviços de assistência à saúde. Ao se entenderem como cogestoras da saúde da sua população, as empresas podem e devem demandar a reorganização dos serviços em prol do desenvolvimento de centros de excelência que melhor atendam às condições clínicas mais prevalentes. Portanto, atentar para indicadores de resultados de saúde relatados pelos pacientes contribui, não apenas para formuladores de políticas públicas, mas também para os atores privados, no sentido de readequarem estratégias e suas organizações em prol de um sistema de saúde que entregue valor para a sociedade.
O terceiro fator de ineficiência, embora também seja visto em outros setores econômicos, é particularmente deletério no setor de saúde: a longa sobrevida dos ineficientes. A permanência dos ineficientes no setor de saúde decorre, entre outros fatores, de uma série de proteções legais e regulatórias, além de cultura prevalente de se evitar impactos de curto prazo em detrimento de melhora nos incentivos, na assistência à saúde e no ambiente de negócios no longo prazo (cultura prevalente também no Judiciário). Na legislação da saúde suplementar, por exemplo, a substituição de prestadores na rede de uma operadora é restrita e os contratos devem conter obrigatoriamente previsão de reajuste, o que, em grande medida, protege os ineficientes.
No caso das operadoras de planos de saúde, a legislação setorial veda a aplicação da lei de falências e estabelece uma série de regimes especiais que podem ser instaurados pelo órgão regulador (a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS), como instâncias de recuperação ou de saída ordenada do mercado. Na prática, contudo, a saída ordenada de uma operadora que se encontra em dificuldades econômicas não é comum. A experiência ao longo do tempo demonstrou que, quando uma operadora entra em desequilíbrio econômico-financeiro, a solução desejável via mercado (i.e., aquisição da carteira ou do controle societário por outra operadora com melhor situação econômica) usualmente não ocorre. Torna-se situação comum que os melhores contratos vão migrando da operadora que está em dificuldades para uma ou mais operadoras que competem com ela e estão em melhores condições econômicas de prover os serviços de assistência à saúde. Isso decorre, essencialmente, do risco de sucessão tributária e trabalhista, que desincentiva solução desejável via mercado.
Em suma, o setor de saúde tem o potencial de contribuir muito mais para o desenvolvimento do Brasil e se tornar, portanto, um dos motores para a retomada do crescimento econômico. Embora muitos dos desafios setoriais sejam vistos em outros países, existem diferenças em termos de padrões epidemiológicos, disponibilidade de recursos e organização do sistema que caracterizam o sistema de saúde no Brasil. Este artigo abordou de forma não-exaustiva três dos principais fatores de ineficiência que comprometem o desempenho setorial. O primeiro fator, o baixo nível de gasto público em saúde, associado à segmentação entre os setores público e privado, tem gerado resultados em saúde insatisfatórios. O segundo fator é a prevalência de um modelo assistencial fragmentado, no qual uma condição clínica é tratada por meio de diferentes episódios de cuidado, muitas vezes, por diferentes prestadores e de forma não-coordenada. E o terceiro fator, embora também seja visto em outros setores econômicos, é particularmente deletério no setor de saúde: a longa sobrevida dos ineficientes.
Em linhas gerais, no que tange à longa permanência dos ineficientes, há que se fazer advocacia da concorrência e um aprimoramento do arcabouço jurídico/regulatório de forma a viabilizar soluções de mercado que promovam uma saída ordenada dos ineficientes. No que diz respeito à fragmentação do modelo assistencial, propõe-se foco na geração de valor em saúde para os pacientes (ou seja, na relação entre os resultados em saúde e os custos para entrega de tais resultados) e maior engajamento das empresas contratantes de planos de saúde para provocar maior velocidade na mudança do modelo de cuidado em saúde praticado. Já com relação ao baixo nível de gastos públicos, além de rediscussão de prioridades orçamentárias, há que se avançar também em maior integração público-privada, otimizando-se os recursos existentes por meio da viabilização de vasos comunicantes na assistência prestada nas duas esferas, de forma a reduzir desperdícios e entregar serviços de saúde com mais qualidade no tempo adequado.
Leandro Fonseca da Silva é Diretor-Presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)