Qualificar o debate para defender o SUS
Ricardo de Oliveira
O Sistema Único de Saúde (SUS) é um sistema baseado em valores como solidariedade, igualdade e equidade, por isso, defender o SUS é fortalecer esses valores como fundamentos da nossa sociedade.
O SUS é um sistema generoso que acolhe e cuida de 200 milhões de brasileiros, sendo, por isso, uma das mais importantes políticas de combate à desigualdade no nosso país. E tem cumprido esse papel, apesar dos seus desafios na melhoria da prestação de serviços.
Alguns números disponíveis no relatório de gestão do Ministério da Saúde para o ano de 2018 atestam uma enorme prestação de serviços de saúde para a população brasileira, conforme vemos a seguir:
– Mais de 70% da população utiliza a saúde pública;
– O SUS dispõe de 42.826 Unidades Básicas de Saúde; 36 mil salas de vacinação; 26.712 equipes de saúde bucal; 25.144 leitos de UCIN e UTI;
– 5.040 municípios são atendidos pelo Programa Saúde na Escola;
– O SUS tem 262.325 agentes comunitários de saúde distribuídos pelo país;
– O SUS realizou em 2018: 26.492 transplantes; 20 milhões de procedimentos radioterápicos; 2,6 bilhões de procedimentos ambulatoriais; 11,8 milhões de procedimentos hospitalares;
– 82,7% da população tem cobertura do SAMU;
– 345 mil pessoas vivendo com HIV/AIDS com carga viral suprimida;
– 300 milhões de doses de imunobiológicos distribuídas, com gasto de R$ 4,5 bilhões;
– 592,5 milhões de unidades de fármacos comprados, em 2018, com gasto de R$ 6,5 bilhões.
No entanto, quem acompanha o SUS pela mídia pode achar que ele não funciona. Infelizmente a nossa cultura midiática maximiza as falhas e minimiza os acertos. Como dizer que um sistema de saúde que apresenta números tão expressivos no atendimento à população não funciona? Podemos criticá-lo pelas deficiências no atendimento, mas dizer que não funciona é um exagero.
Esse tipo de divulgação promove a desqualificação do SUS, a corrosão da sua imagem, e não ajuda o debate sobre os desafios a serem superados para melhorar a sua prestação de serviços.
A consequência política é que a população não consegue fazer uma avaliação equilibrada dos acertos e erros da prestação de serviços do SUS, e isso é muito perigoso para o SUS porque a sua sobrevivência, seu desenvolvimento e a superação dos seus desafios dependem do apoio da população.
O SUS precisa se transformar em um valor para a sociedade brasileira, como o sistema de saúde inglês é para os ingleses. Os ingleses se orgulham do seu sistema de saúde, a ponto de mostrá-lo ao mundo na abertura das Olimpíadas de 2012, apesar de criticá-lo exigindo melhorias no atendimento. Exigem melhorias, mas não a sua extinção.
O SUS tem muitos desafios, mas a superação dos seus problemas depende de que a população o valorize, e para isso precisamos de um debate público qualificado sobre seus resultados e desafios. Infelizmente o que temos hoje, majoritariamente, é um debate desqualificado, superficial, baseado em denúncias do seu mau funcionamento e da culpabilização dos gestores. O debate atual é demagógico e simplista. Não ajuda a melhorar a prestação de serviços de saúde para a população.
Infelizmente não há um culpado. Seria fácil se tivéssemos um culpado, mas não o temos. Quem insiste nessa tese está enganando a população. Se o gestor fosse culpado, seria fácil resolver o problema: troca-se o gestor. Vamos refletir um pouco. Quantos gestores municipais, estaduais e federal já foram trocados no SUS nos últimos 30 anos? Não é possível que tenhamos errado, e nem acertado, em todas as escolhas. Mas o debate público continua o mesmo, colocando a culpa no gestor e denunciando episódios de mau funcionamento do SUS. Apontar os problemas de atendimento à população é necessário, mas induzir a população a acreditar que apenas os episódios de mau atendimento representam os resultados do SUS como um todo é uma enganação da opinião pública.
Portanto, é preciso qualificar o debate sobre os principais problemas que dificultam a melhoria da prestação de serviços de saúde à população. Vou enumerar cinco deles.
Começo pelas regras de gestão do setor público: as regras que orientam as ações administrativas e de controle do setor público dificultam bastante a melhoria da eficiência e da qualidade na prestação dos serviços de saúde. Segundo, o excesso de judicialização, que está criando outra porta de entrada no SUS e comprometendo a equidade no acesso aos serviços. Terceiro, os interesses corporativos, políticos e econômicos que disputam o orçamento da saúde, e a direção das suas políticas segundo seus interesses particulares. Quarto, o subfinanciamento federal que está comprometendo, cada vez mais, os orçamentos dos Estados e dos municípios, que já ultrapassaram, há muito tempo, os limites constitucionais para o financiamento da saúde. Quinto, o fato do gasto privado ser maior que o gasto público em um sistema público e universal, uma contradição entre o que diz a constituição e a realidade da vida.
Por fim, olhando para o futuro, penso que é preciso que a população, a classe política, a mídia, as entidades do setor de saúde, pesquisadores, representantes dos profissionais, servidores da saúde, os operadores do direito, os órgãos de controle, os gestores, enfim, todos que de alguma forma interferem na prestação dos serviços de saúde pública se unam na defesa do SUS, para que ele possa sobreviver e se desenvolver.
Essa unidade política deve reconhecer que o SUS é fruto de uma obra coletiva, que envolve toda a população e várias instituições, perpassa vários governos e precisa de continuidade nas suas políticas, como forma de garantir o direito à saúde para a população.
Não há solução fácil, para melhorar o sistema de saúde vai demandar tempo.
Termino com uma frase do consultor em saúde Eugenio Vilaça: “O SUS não é um problema sem solução, é uma solução com problemas”.
Ricardo de Oliveira foi secretário estadual de gestão e recursos humanos do ES no período de 2005-2010 e secretário estadual de saúde do ES entre 2015-2018. Autor do livro “Gestão Pública: Democracia e eficiência”.