Parto vaginal humanizado no Brasil, um artigo de luxo

Mariana Seabra

 

Muito se fala sobre a epidemia de cesárea no Brasil, país que até 2014 era campeão mundial com uma taxa de 57% sobre o total de partos. Entretanto, pouco se tem debatido a persistente dificuldade no acesso ao parto vaginal humanizado, que se tornou um item de luxo no país.

 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma elevada taxa de cesárea se constitui um problema de saúde pública na medida em que pode causar complicações significativas, e às vezes permanentes, à mãe e ao bebê, especialmente em locais sem infraestrutura e/ou com pouca capacidade para realizar cirurgias de forma segura e tratar complicações pós-operatórias. Um estudo de 2016 dimensionou que a chance da mulher vir a óbito no período gravídico-puerperal na cesárea é três vezes maior do que no parto vaginal. O perfil esperado das mulheres brasileiras que realizaram cesáreas é composto, em sua maioria, de brancas, com maior grau de escolaridade, mais velhas, primíparas, com melhores condições socioeconômicas e que tem acesso a partos em hospitais particulares. Na década de 1990 houve um certo processo de glamourização das cesáreas, e hoje, no privado, essa taxa ainda chega a 90% em alguns serviços.

 

No andar de cima, porém, esse quadro vem se alterando, com uma maior busca maior das mulheres ao parto vaginal humanizado. Não à toa se encontra um aumento da construção de quartos no modelo de pré-parto, parto e pós-parto (PPP) em hospitais privados. Esse fenômeno está relacionado a diversos fatores, tais como um melhor acesso à informação acerca das vantagens do parto vaginal e os riscos envolvidos numa cesárea, o aumento da produção de evidências científicas relacionadas ao tema (como o estudo “Nascer no Brasil”), a produção audiovisual realizada por ativistas (como as três edições do filme “O renascimento do parto”), a disseminação das doulas e a próprio debate público que é intensificado a partir de algumas políticas de saúde, como a Rede Cegonha. Esse novo cenário tem levado as mulheres a desejarem não só o acesso ao parto vaginal, mas um parto vaginal digno e respeitoso, livre de violência obstétrica e com o protagonismo da mulher na tomada de decisão sobre seu corpo, assim como preconiza as diretrizes da OMS e o Ministério da Saúde.

 

Esse parto humanizado para as classes média e alta é encontrado em raríssimos plantões de planos particulares de saúde, levando as mulheres a pagar uma equipe totalmente privada. Esse parto pode custar mais de 10 mil reais, principalmente quando a equipe é composta por mais de uma especialidade, como médico obstetra e médico neonatologista, enquanto o parto domiciliar planejado, assistido por enfermeiras obstétricas, tem um custo um pouco inferior, girando entre 3 e 7 mil reais.

 

Já para as usuárias do SUS, esse modelo de parto almejado é encontrado em algumas poucas maternidades tradicionais que passaram por qualificações e centros de partos normais. De forma um tanto paradoxal encontra-se um incremento no número de cesáreas em diversas regiões de saúde, sobretudo fora das regiões metropolitanas. No estado do Rio de Janeiro, nas regiões de saúde em que há pouca diversidade de recursos como equipamentos, financiamento, informações e principalmente de profissionais qualificados e disponíveis para a realização e atenção ao parto vaginal, a cesárea impera. Mesmo em regiões onde existe um número de leitos em maternidades adequadas pelo número de gestantes estimadas, a alta cobertura hospitalar não garante o acesso ao parto normal. A dificuldade da manutenção das escalas obstétricas de 24 horas nos municípios menores é uma realidade enfrentada pelos gestores no estado fluminense.

 

A dinâmica dos profissionais obstetras é de trabalhar de sobreaviso, não só no plantão de uma maternidade, mas de várias entre os municípios da região, cada dia um plantão, além do seu próprio consultório privado. Essa situação condiciona um modelo de itinerância de médicos obstetras pelos plantões na região, onde estes circulam entre os municípios para a realização de cesáreas com dia marcado. Nesse caso, muitas vezes as mulheres sequer entram em trabalho de parto, muito menos têm escolha do modo como vão parir. A discussão de indicação clínica ou não da cesárea nem chega a ocorrer. Mesmo aquelas que porventura tenham recursos para pagar por um parto vaginal humanizado, não encontram esse acesso dentro de sua região de residência, tendo que se deslocar para grandes centros urbanos para tal. No caso da Noroeste fluminense, as taxas de cesáreas chegam a 90%, e grande parte no SUS, isso porque não há disponibilidade de profissionais e recursos para assistir um parto vaginal. Um estudo de 2015 feito por Maria do Carmo Leal e outros pesquisadores aponta que o Brasil vive uma desorganização do sistema de saúde na oferta de leitos obstétricos, uma precariedade na infraestrutura hospitalar e baixa qualidade técnica no atendimento obstétrico e perinatal.

 

Existe uma fragilidade da condução da política pública por parte dos gestores de municípios de pequeno porte, tanto aqueles que possuem maternidade, quanto os que não tem, a lógica da regionalização dos serviços é pouco incorporada e dá espaços a arranjos públicos-privados mais convenientes, mas nem sempre para as mulheres.

 

A política pública de atenção materno-infantil em âmbito nacional pouco tem avançado nesse sentido; os últimos centros de parto normais (CPN) possuem portaria de habilitação que datam de 2015, somando-se ao todo 27 CPNs no Brasil inteiro, em sua maioria da macrorregião Nordeste, evidenciando que a mudança de modelo obstétrico está inacabada. Quanto ao provimento de novos profissionais na cena de parto, em especial de enfermeiras obstétricas, há um descompasso entre a qualificação daqueles que tradicionalmente já estavam nesse espaço e a contratação de novos, além de claro, a necessidade de integração entre estes atores.

 

Estima-se que os gastos públicos com a cesárea são muito superiores ao do parto vaginal. Além do excesso de intervenção nos corpos das mulheres e os riscos à saúde gerados por este procedimento, estudos apontam um aumento considerável nos custos para o SUS. Outro estudo de 2016 estima um excedente de 560 mil cesáreas desnecessárias por ano. A estimativa de redução dos patamares de cesáreas, equivalendo ao preconizado pela OMS, levaria a uma redução potencial de R$ 57.755.532,25 (ou US$ 14.809.110,83 – conforme cotação do dia 31 de dezembro de 2015).

 

Nesse sentido, carece a necessidade de se investir na democratização do acesso ao parto vaginal, em parte pela redução de custos do sistema, mas principalmente pelo bem-estar e direito das mulheres a um parto digno e respeitoso pelo SUS.

 

Mariana Seabra é Coordenadora da Política de Saúde da Mulher da Secretaria de Saúde do Recife e membra do coletivo Adelaides