O impasse da maturidade do SUS

 

Marcus Pestana

Passados mais de 30 anos do lançamento dos pilares para construção do Sistema Único de Saúde (SUS), no processo constituinte de 1988, que implicou na mudança de paradigma na organização do sistema público de saúde no Brasil, chegou o tempo da maturidade. É hora de enfrentar os novos desafios colocados. Faz-se necessário abandonar a velha retórica que tece sempre loas ao SUS e mascara problemas efetivos a serem enfrentados. Os avanços são inegáveis, mas é preciso reconhecer a distância abissal que existe a separar o SUS constitucional daquele que ganha vida real e concreta no cotidiano da população. 

Trinta anos depois, o SUS não é nem o “paraíso” presente no discurso de alguns gestores e sanitaristas mais entusiasmados, nem o caos que ocupa, por vezes, as manchetes de parte da mídia e os discursos demagógicos de políticos populistas. O SUS é uma obra em permanente construção. Com tropeços e obstáculos, gargalos e vazios assistenciais, sempre assistimos avanços permanentes. Todavia, é inevitável perceber retrocessos nos últimos anos diante da brutal recessão e do agravamento da crise fiscal.

A grave restrição fiscal indica o pequeno espaço para incrementos reais e significativos no Orçamento do SUS nos planos nacional, estadual e municipal nos próximos anos, o que dependerá fundamentalmente da capacidade negociadora dos gestores diante do sistema político decisório e da sociedade brasileira. A emenda constitucional que versa sobre o limite de gastos públicos fixa um teto agregado e global por poder, mas não tetos setoriais.

A crise federativa, o estrangulamento orçamentário grave dos municípios e estados, a grande expectativa despertada pelos novos governos a partir das eleições de 2018 e a crise econômica dos últimos anos, que aumenta a demanda sobre o SUS, notadamente pelo crescimento do desemprego, dramatizam o desafio.

O sistema público de saúde tem gestão e financiamento compartilhados em um país continental. Nenhuma nação no mundo apostou tão radicalmente na descentralização das políticas de saúde. Teremos, portanto, que administrar bem a ansiedade por resultados imediatos. A solidariedade entre os gestores das três esferas de poder é chave para a solução dos problemas complexos que temos pela frente.

Hoje é sabido que as estruturas flexíveis de gestão de serviços de saúde são muito mais eficientes e têm maior produtividade. É preciso traçar um rumo claro em relação aos arranjos institucionais ideais para os níveis de atenção primária, secundária e terciária à saúde e para a assistência farmacêutica.

O subfinanciamento do sistema público brasileiro de saúde é uma realidade incontestável desde seu nascimento. Diante da crise fiscal que inibe a expansão de gastos públicos no Brasil nos próximos anos e do subfinanciamento crônico do SUS, é preciso investir pesado em inovação e melhoria da produtividade dos recursos, combatendo ineficiências e fazendo mais e melhor com cada real.

A reforma sanitária brasileira produziu uma mudança radical: de um sistema de acesso excludente para um de acesso universal; de uma centralização autoritária para a municipalização radical; de um modelo assistencial hospitalocêntrico e altamente medicalizado para a primazia da atenção primária e da vigilância em saúde; de uma fragmentação sistêmica para uma lógica única e integradora do ponto de vista federativo e assistencial com a organização de redes.

Depois de 30 anos de existência do SUS, chegamos ao impasse da maturidade: a contradição entre um marco constitucional e legal excessivamente generoso e aberto, financiamento insuficiente e pressão de custos crescentes em função da transição demográfica e da veloz incorporação de inovações tecnológicas.

Diante de tamanho desafio, temos que perseguir a busca de novas fontes de financiamento. Paralelamente, é essencial melhorar a gestão dos recursos existentes.

Podemos qualificar melhor princípios constitucionais e legais, introduzir ferramentas de gestão mais eficientes e identificar formas de melhorar o financiamento.

Diante de tamanho desafio, faz-se necessário:

  • Definir claramente o padrão de integralidade a ser oferecido à população, atacando o problema da judicialização da saúde e aprimorando métodos e instituições voltadas para a regulação da incorporação tecnológica;
  • Buscar novas fontes de financiamento (introdução do copagamento, DPVAT, renúncias fiscais, etc.);
  • Erguer formas efetivas de cooperação com a saúde suplementar, estabelecendo claramente o entendimento de sua natureza complementar e cooperativa, já que na verdade o sistema não é único, convivendo paralelamente três subsistemas: SUS, saúde suplementar e desembolso direto dos cidadãos. O sistema público e a saúde suplementar têm problemas e base produtiva comuns. Para o SUS, diante de suas limitações, é imprescindível que a saúde suplementar vá bem;
  • Investir pesado no uso de ferramentas tecnológicas de gestão e regulação para o aumento da produtividade dos recursos (prontuário, classificação de risco, cartão SUS, telemedicina, etc.);
  • Combater os desperdícios, a ineficiência e a corrupção;
  • Desenhar melhor a regionalização do sistema visando ganho de escala, escopo e qualidade, a partir da concepção de redes integradas e regionalizadas de atenção à saúde. 

Não há mais lugar para discursos ufanistas. As mazelas e os gargalos presentes no dia a dia do usuário do SUS saltam aos olhos. Diante disso, a pior atitude é a inércia ou o refúgio em fundamentalismos sem base real. A conquista da utopia dos constituintes é um processo permanente. Estancar os retrocessos e ter ousadia para mudar o que é preciso mudar, arquivando dogmas e “vacas sagradas” e enfrentando com realismo e coragem as novas perguntas que a realidade coloca diante de nós, parece ser o caminho.

Marcus Pestana foi Secretário Estadual da Saúde de Minas Gerais (2002/2010), Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde – CONASS (2006) e Membro Titular da Comissão de Seguridade, Saúde e Família da Câmara de Deputados (2010/2018)