Dois lados de uma mesma moeda
Flavia Poppe
Constitucionalmente, a saúde é um direito público e, portanto, todos os recursos disponíveis devem priorizar o melhor interesse do público e não os de uns em detrimento de outros (princípio da equidade). A partir desse entendimento, e observando com mais detalhe o funcionamento de sistemas de saúde, observamos que a prestação de serviços de assistência possui um emaranhado de relações entre organizações públicas e privadas intrínsecas e interdependentes. É o caso de toda a indústria de insumos utilizados tanto nos serviços de saúde públicos quanto privados.
Indústrias de equipamentos médicos (do mais simples ao mais complexo), oxigênio, medicamentos, órteses, próteses, sem falar nas farmácias com suas portas abertas e produtos de prateleiras que consumimos como em um supermercado, são essenciais para o funcionamento do sistema e definem nítidos traços de um “complexo industrial da saúde” que precisa satisfazer as necessidades da população. De acordo com os dados das Contas Satélite de Saúde – uma extensão do Sistema de Contas Nacionais –, em 2015 a participação das atividades de saúde na renda gerada no país (valor adicionado) foi de 7,3%, o total de ocupações foi de 6,4% e o total de remunerações, 9,2%. Esses valores vêm crescendo desde a primeira publicação em 2007. Portanto, existem relações diretas entre economia e saúde, entre organizações públicas e privadas que são inerentes e necessárias ao funcionamento de serviços de assistência.
O desafio é equilibrar a supremacia dos objetivos de saúde da população com as melhores práticas de financiamento público e privado. A linha é tênue e me faz lembrar a célebre frase de André Malraux, “uma vida não vale nada, mas nada vale uma vida”, que ilustra muito bem os extremos. De um lado, uma visão comercial da medicina que coloca em primeiro plano os interesses da indústria, e do outro, a de que tudo é essencial quando se trata da saúde das pessoas.
É preciso que haja critérios racionais e razoáveis para a priorização de recursos, do contrário os gastos sobem em velocidade maior do que seu financiamento e, pior, de forma progressiva. Quando se assume que tudo em saúde é essencial e quando se considera que restrições para certos tratamentos (muitas vezes ainda não aprovados por agências reguladoras nacionais e internacionais) são uma heresia, não estamos sendo racionais. Mas, também, quando o princípio que determina prioridade, acesso ou o tipo de tratamento é o dinheiro, sem levar em conta o ser humano e suas necessidades, deixamos de ser razoáveis. Dois lados da moeda onde não se enxerga a moeda, e sim cara ou coroa. Perde-se a noção do valor da moeda, perde-se a noção do valor da saúde coletiva.
Embora a ideia de unicidade seja um dos valores fundacionais do SUS, quase sempre nós brasileiros pensamos no sistema de saúde de forma dual: existe a saúde pública, operada pelo SUS, e a saúde privada, operada pelos planos de saúde e hospitais privados. Tal dualidade se expressa na opinião pública e responde por boa parte das ineficiências do setor de saúde como um todo.
Os problemas de saúde podem ser semelhantes entre usuários de planos de saúde e do SUS, mas as condutas e insumos utilizados podem ser muito diferentes e isso nada tem a ver com qualidade ou resultado. Hoje, tal como percebemos e fazemos uso desses serviços, os custos de transação são enormes, pouco racionais e desperdiçam ganhos de escala. Para dar um exemplo, o processo decisório de incorporação ou desincorporação de tecnologias nos serviços de saúde, criado no Ministério da Saúde por profissionais com alta capacidade técnica, apenas recentemente vem sendo “aproveitado” pelas diferentes esferas federativas da República e, menos ainda, pelos prestadores de serviços privados, que acreditam que tecnologia é diferencial de marketing para a escolha de seus clientes. Tecnologias como atrativo de marketing é um caso típico da falta de uso racional de recursos, a cara da moeda ou moeda cara. Tecnologias adequadas às reais necessidades a partir de bons protocolos e acessíveis ao maior número possível de pessoas costumam caracterizar sistemas de saúde mais justos e racionais.
Não é lógico assumir que a saúde privada é boa e a saúde pública é ruim, ou vice-versa. Não existem apenas contrastes entre os setores público e privado. Também existem funções afins e semelhantes entre os dois. Gestores de algumas operadoras de planos de saúde, por exemplo, especialmente as medicinas de grupo, entenderam que o uso racional dos recursos na prestação de serviços é vital para a sustentabilidade do setor.
Na incômoda função de “terceiro pagador”, as operadoras recebem um valor fixo mensal que, de forma análoga ao serviço público, corresponderia a um orçamento para cobrir os gastos de “terceiros” (usuário e pontos de serviços, sejam eles médicos, outros profissionais de saúde, laboratórios de exames clínicos e de imagem, hospitais e outros centros especializados). O uso indiscriminado e não justificado (irracional), seja por parte dos profissionais de saúde ou por parte da população segurada, aumenta os custos desnecessariamente. Como as operadoras não podem repassar integralmente seus custos para os preços dos planos para seus clientes devido às regras da Agência Nacional Reguladora da Saúde Suplementar (ANS), há incentivos e interesses comuns aos gestores públicos para adotarem boas práticas ou as opções mais custo-efetivas. Não é à toa que a agenda proposta pelo Instituto Coalizão Saúde, que reúne grandes empresas do setor privado da saúde, propõe alguns temas que são parte da agenda do SUS desde sua origem e que, portanto, são de interesse comum. Entre eles, podemos citar a mudança de cultura com maior foco nas ações de promoção e prevenção de agravos em saúde, novos modelos assistenciais para doenças crônicas e saúde do idoso, fortalecimento da atenção primária, acesso a medicamentos para garantir maior adesão aos tratamentos, entre outros.
Provedores públicos e privados muitas vezes competem onde não deviam, e em outras instâncias deixam de cooperar em diversas agendas vitais para a melhora das condições de saúde da população. São dois lados de uma mesma moeda e o que importa é o valor dessa moeda, não o jogo de cara ou coroa.
A moeda terá mais valor na medida em que os arranjos e possibilidades de uso dos recursos decorram da visão do sistema de saúde como um todo, na medida em que haja mais articulação e coordenação, e sobretudo na medida em que o foco esteja posto nas melhores práticas de saúde aplicadas com ética humana e para o maior número possível de pessoas, independente de seu status socioeconômico. Cara e coroa ainda é a melhor forma apenas para o juiz de futebol, que precisa dividir os times que jogam no mesmo campo.
Flavia Poppe é economista e especialista em sistemas de saúde